terça-feira, 30 de novembro de 2010

O vampiro na sala de aula


O sucesso da saga Crepúsculo revela a fascinação que a literatura de vampirismo exerce sobre os jovens; o tema pode ser explorado para iniciar os alunos no mundo dos livros
E m um dos capítulos de Crepúsculo, um dos maiores fenômenos editoriais dos últimos tempos, o vampiro Edward Cullen leva Bella, donzela protagonista, até uma clareira ensolarada, revelando seu verdadeiro aspecto: sua pele resplandece, repleta de pontos cintilantes. É sua maneira de mostrar que, ao contrário de tudo aquilo que se escreveu a respeito, os vampiros se mantêm na sombra apenas para que as pessoas não saibam que são diferentes: não são aniquilados pela luz do sol.
Segundo Ken Gelder, autor de Reading The Vampire, coletânea que procura analisar os elementos culturais que permeiam as narrativas, cada nova história de vampiros, desde o sucesso de Drácula, revisa e contesta alguns elementos das narrativas que a antecederam, buscando assim afirmar sua própria validade. Os vampiros de Anne Rice, por exemplo, ainda dormem em caixões e perecem quando expostos ao sol (assim como o Conde Drácula, do irlandês Bram Stoker), porém ridicularizam o propalado pavor de crucifixos. Por que, afinal, deveriam temer um mero objeto? 
Pode ser revelador observar as retificações e acréscimos que cada uma dessas crônicas vampirescas faz às suas predecessoras: elas podem nos ajudar a traçar um pequeno retrato das transformações do nosso imaginário ocidental.
Século XVIII: caça aos vampiros 
Embora na mitologia seja possível encontrar divindades e demônios bebedores de sangue, as primeiras referências a vampiros, tais como os conhecemos, remontam ao século XVIII. No também chamado Século das Luzes, chega à Europa Ocidental essa figura folclórica das regiões eslavas, dos Bálcãs e da Romênia, por meio da ampla difusão dos casos jurídicos de Peter Pogojovitz e de Anatole Paole, dois camponeses sérvios cujos cadáveres foram exumados por ordem judicial, sob suspeita de que tivessem se tornado vampiros após a morte.  
A partir daí, uma verdadeira histeria de caça aos vampiros começaria precisamente no século¬ do Iluminismo, cujos porta-vozes rejeitavam qualquer dogmatismo ou superstição. Aquilo que poderia parecer paradoxal mostra-se, na verdade, bastante elucidativo. Em A Dialética do Esclarecimento, Adorno e Horkheimer comentam como o “Esclarecimento”, ao tentar submeter toda e qualquer instância do mundo ao signo da razão, acaba instaurando uma relação tensa com o “Outro”.  Muita luz, como se diz, acaba apenas projetando uma sombra escura: a história do esclarecimento é também a história daquilo que a razão rejeitou. Daí porque o Sé¬culo das Luzes foi também o dos vampiros,  particularmente adequados para representar esse “Outro” temível, que unificava tudo o que era considerado inadmissível pela razão: sexualidade desenfreada, instâncias sobrenaturais, morte.
Datam da metade desse século as primeiras referências aos vampiros na Literatura em três poemas de língua alemã: o poema Der Vampyr, de Heinrich August Ossenfelder, em que um homem rejeitado por uma donzela piedosa ameaça visitá-la durante a noite e sugar seu sangue, o poema narrativo Leonore, de Gottfried August Burger, e A Noiva de Corinto, de Goethe, em que uma jovem morta retorna de sua cova para visitar seu amado. Todas essas narrativas já possuíam, em maior ou menor grau, os elementos de erotismo, sedução e necrofilia que se tornariam típicos do gênero. 
Data também do século XVIII, na Inglaterra, o advento do romance gótico, cujos autores mais célebres seriam Horece Walpole e Ann Radcliffe. Embora seus romances não fizessem referência a vampiros, essas narrativas de teor sentimental uniam ingredientes sombrios e sobrenaturais a elementos melodramáticos. Antecipariam, assim, a literatura sobrenatural do nosso tempo. Nessas narrativas, já se revelava uma mescla de anseio e fascínio pela morte, evocada numa atmosfera de mistério e terror. Também num aspecto mais pragmático as nossas narrativas vampirescas foram antecipadas por esse gênero híbrido: o romance gótico tornou-se, até a primeira década do século XIX, um negócio bastante rentável para livreiros e escritores profissionais, ocupados em suprir a demanda de um número crescente de leitores incansáveis. 
Século XIX e Drácula
A partir desse século, com o advento do romantismo, encontros literários com vampiros se tornarão progressivamente mais recorrentes. Na Inglaterra, Samuel Taylor Coliridge, na virada do século, evoca o tema em seu poema inacabado Christabel, seguido por Robert Southey, em Thalaba. Lord Byron, em Giadour, narraria um encontro de seu herói com um vampiro antes ainda que John Polidori publicasse seu The Vampyre, em 1819, considerada a primeira narrativa em prosa a respeito do tema. Em Paris, em 1920, Lord Ruthwen ou Les Vampires, de Cyprien Berard, é publicado anonimamente. No mesmo ano, Le Vampire, peça de Charles Nodier, estreia no Théâtre de la Porte Saint-Martin. Em 1850, na mesma cidade, Alexandre Dumas estrearia O Vampiro, sua última peça.
Seria possível mencionar ainda muitos outros autores de diversos países do mundo ocidental. É, porém, inegável que a obra que consolidou a popularidade dos vampiros na literatura e forneceu as bases sobre a ficção contemporânea a respeito desse personagem foi Drácula, do autor Bram Stoker, publicada em 1897. A maior parte das características que atribuímos aos vampiros foi estabelecida por esse romance: o hábito de dormir em caixões durante o dia e acordar à noite, a extrema vulnerabilidade à luz do sol, a palidez cadavérica, a força descomunal, o pavor de crucifixos e dentes de alho, a capacidade de se transformar em morcegos, entre outras características propagadas. 
O romance, cujo protagonista é o Conde Drácula, inspirado no conde romeno Vlad Tepes III, conhecido como Vlad Dracul, evidencia de maneira bastante precisa o pavor do europeu esclarecido diante do Outro (que pode ser o eslavo, o judeu, o asiático), o temor do bretão colonizador diante da possibilidade de uma descolonização, de uma colonização às avessas, em que estrangeiros não civilizados invadiriam a nobre Inglaterra, ameaçando as conquistas da razão, revertendo o percurso da nascente Revolução Industrial. 
Século XX e Anne Rice
No século XX, a popularidade dos vampiros tornou-se ainda mais generalizada depois que sua figura começou a ser explorada no cinema. Em 1922, o alemão F. W. Murnau filmou Nosferatu, primeira adaptação cinematográfica de Drácula. Na Literatura, floresceram uma infinidade de épicos vampirescos, dentre os quais os mais célebres são as Crônicas Vampirescas, de Anne Rice, que incluem o romance Entrevista com o Vampiro e uma série de outras narrativas sobre o mesmo universo. 
Nos romances de Anne Rice, como em obras de outros autores da mesma época, nota-se uma evidente guinada na maneira como os vampiros são retratados. As histórias não são mais contadas do ponto de vista de um homem que se depara com um vampiro, mas, sim, dos próprios vampiros, fazendo com que o leitor se identifique com essas criaturas sobrenaturais. O vampiro deixa de ser o Outro para ser uma imagem projetada de mim mesmo, mais sedutora e ambivalente. O que encontramos são vampiros humanizados, repletos de conflitos psicológicos, reflexões existenciais e afeições duradouras. 
A sexualidade e o jogo de sedução continuam a ser elementos fundamentais. No entanto, embora os vampiros ainda suscitem sentimentos dúbios, o embate entre atração e repulsa é menos acirrado. Por trás dessa guinada, existe uma transposição espacial e simbólica: a guinada do Velho para o Novo Mundo. 
Em Entrevista com o Vampiro, a autora remete, por meio dos vampiros europeus que migram para a América, Louis e Lestat, à experiência da colonização. No início do livro, os dois vivem juntos numa propriedade escravocrata, que será incendiada pelos escravos revoltados após desvendar a natureza monstruosa de seus senhores. Uma vez que os vampiros são, em princípio, imortais, o romance pode refazer, à sua maneira, a trajetória dos Estados Unidos, do período da colonização até o momento presente, passando por uma temporada de retorno à Europa. Nos romances que se seguem, Lestat se torna, sintomaticamente, líder de uma banda de rock: de criadoras demoníacas e temíveis, os vampiros pós-modernos passam a ícones da cultura pop. 
Século XXI e Crepúsculo
Se for possível dizer que a figura dos vampiros já se encontra um tanto suavizada nos romances de Anne Rice, o que dizer, então, a respeito de Crepúsculo? Os vampiros protagonistas da série frequentam a escola, se alimentam do sangue de animais para evitar o sangue humano, não dormem em caixões, são bons alunos, cumprem suas promessas, podem se expor ao sol e jogam beisebol.  Trata-se fundamentalmente de uma história romântica. O vampiro adolescente Edward Cullen é uma espécie de Romeu contemporâneo. Há ainda um erotismo sutil na história, mas bastante suavizado. A vida dos vampiros é apenas uma versão um pouco mais glamourosa da vida comum. 
Em Entrevista com o Vampiro, o vampiro Louis ainda fala com nostalgia de seu último amanhecer, deixando claro que há um preço relativamente caro a pagar pela imortalidade. No caso dos vampiros de Stephenie Meyer, o preço a pagar parece ínfimo, diante das promessas de beleza sobrenatural e juventude eterna: “Eu os olhava por que seus rostos, tão diferentes, tão iguais, eram todos devastadoramente, inumanamente lindos”, diz Bella Swam, a respeito dos Cullen. “Eram rostos que você nunca espera encontrar além de, talvez, nas páginas editadas de uma revista de moda.” Os vampiros deixam de ser a imagem concretizada de nossos desejos obscuros e temíveis para se tornarem modelos, personificações de nossos ideais de beleza, juventude e até mesmo bom comportamento. Instaura-se uma separação entre vampiros bons e vampiros maus; o terror encontra-se praticamente ausente, substituído por momentos de ação e aventura, evocando as narrativas americanas de super-heróis. O vampiro Edward Cullen, mais do que um sedutor perigoso e carismático, como ainda o era Lestat, de Anne
 Rice, é de um bom- mocismo exemplar: faz questão de se apresentar oficialmente ao pai da virgem Bella como seu namorado, e ao final do primeiro romance leva a moça ao baile de formatura do colegial. Os vampiros finalmente podem sair ao sol: já não representam nenhum perigo para as nossas convenções sociais. Resta saber o que fazer com nossos temores, fetiches e obsessões.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Drogas e adolescência


O psiquiatra e especialista em dependência química Dartiu Xavier alerta para o aumento de consumo de crack e defende uma prevenção na escola menos policialesca
Um estudo inédito sobre o perfil e a quantidade dos usuários de crack no Brasil está sendo preparado pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), subordinada ao Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República. O mapeamento vai analisar os 26 estados brasileiros, o Distrito Federal e as nove regiões metropolitanas e é reflexo de um grave problema de saúde pública. Embora sejam escassas as pesquisas sobre o crack, sabe-se que o consumo da droga derivada da cocaína (restrito a São Paulo na década de 90) vem se espalhando pelo País em diferentes classes sociais – não se restringe mais aos moradores de rua e grupos menos favorecidos. Além do aumento da apreensão de crack no Brasil (de 200 quilos, em 2002, para 580 quilos, em 2007, segundo o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime), os serviços de atendimento a dependentes químicos relatam que a droga já é a segunda maior causa de procura por atendimento nos centros do SUS especializados em abuso de álcool e drogas, o Caps-AD. Nesses locais, o crack só perde para a bebida. É uma realidade que o psiquiatra Dartiu Xavier, da Faculdade Paulista de Medicina, conhece bem. Coordenador do Programa de Orientação e Tratamento a Dependentes (Proad) há mais de duas décadas, ele vem realizando estudos na área. Um deles foi interrompido pela polêmica que gerou. A experiência consistiu em acompanhar um grupo de 50 usuários de crack que passaram a utilizar maconha na tentativa de conter o impulso de consumir crack. Conforme os dados, 68% deles haviam trocado de droga depois de seis meses. Passado um ano do início do tratamento, quem fez a substituição deixou também a maconha. Nessa entrevista, Xavier fala sobre os fatores de risco que podem levar adolescentes e jovens a se viciarem em drogas, explica as características do crack e defende a quebra de paradigma dos programas de prevenção às drogas.
Carta na Escola: Em todo o Brasil, houve aumento da procura por serviços de atendimento a dependentes químicos do crack. O número de apreensões também cresceu, o que aponta para o aumento do consumo. O que causou esse aumento?
Dartiu Xavier: A questão do consumo de drogas é multifatorial e, no caso do crack, é um fenômeno que ocorre no mundo todo, não só no Brasil. E tem a ver com os fatores de risco. Alguns são identificáveis: situações de exclusão social e desfavorecimento. Por outro lado, as classes mais abastadas também estão consumindo crack. O que acontece é que mesmo essas classes mais favorecidas têm uma série de problemas. A situação de abandono psicológico e o descaso são algo muito presente. Claro que, para um adolescente de rua, essa situação de abandono é patente.
CE: Os jovens são mais vulneráveis às drogas?
DX:
 São, por uma série de motivos. Primeiro, tanto o adolescente quanto o adulto jovem estão numa fase de transgressão, contestação e experiência pelo novo. Isso marca muito para o bem e para o mal. Ajuda no desenvolvimento psicológico deles – a gente só consegue ser adulto com uma identidade própria quando contesta o modelo de pai e mãe. Existe também a questão da alteração de consciência promovida pela droga, que é um fascínio. Ser outra pessoa ainda que seja por algumas horas. Mas estamos falando de um uso experimental. Uma minoria se tornará dependente.
CE: O que vai fazer um indivíduo ser um usuário ocasional ou dependente?
DX:
 Se esse indivíduo está passando por uma situação de dificuldade, seja psicológica, social ou de saúde, o risco de ele ficar dependente é alto. Se o jovem ficar só na curiosidade, o risco é baixo.
CE: Isso tem a ver com o tipo de droga usada? O Ministério da Saúde lançou a campanha “Crack, Nunca Experimente”. O risco de dependência do crack é mais alto?
DX:
 Sim, o risco de se viciar em crack é muito maior do que de se viciar em cocaí-na, por exemplo. O pó da cocaína é cheirado: entra pela mucosa nasal e pela corrente sanguínea, pelo lado venoso. Faz um trajeto enorme pelo corpo até chegar ao cérebro, que é o lado arterial. Ao passo que, ao fumar crack, a droga vai direto para os alvéolos pulmonares e, em seguida, para o cérebro. É muito mais intenso e, portanto, muito maior o risco de dependência, porque, quando a concentração da droga no organismo atinge um pico muito grande, a queda da concentração que se segue também é grande e abrupta. É assim que a droga desperta a sensação de fissura pela droga.
CE: No caso do sucesso do tratamento, a questão da idade tem influência?
DX:
 Não é exatamente a idade. Com os melhores tratamentos temos uma taxa de 30% de usuários que realmente deixam a droga; 70% não conseguem fazê-lo. Isso nos melhores serviços de tratamento do mundo. Antigamente, estes 70% eram considerados uma taxa de fracasso. Hoje, a gente desenvolveu objetivos intermediários através de estratégia de redução de danos: não consigo fazer com que o usuário largue a droga, mas que passe a assumir comportamentos menos danosos para ele.
CE: O senhor realizou um estudo que gerou polêmica na época, mas obteve -resultados: -que foi substituir o crack pela maconha até a desintoxicação. Esses estudos foram paralisados?
DX:
 Eles não foram formalmente continuados por uma série de problemas políticos, inclusive. Em linhas gerais, era um grupo de dependentes que começou a usar maconha para tentar sair do crack. Era uma terapia de substituição, já que a maconha seria menos danosa. E o que a gente documentou é que 68% deles abandonaram totalmente o crack. Mais surpreendente ainda foi que eles também largaram a maconha. Eles a usaram como uma porta de saída. Para dar continuidade ao estudo, eu precisaria ter um grupo de controle, que fosse submetido ao consumo para poder comparar. Precisaria de uma regulamentação da Anvisa, do Ministério da Saúde. Mas houve uma polêmica em cima disso. E só agora o professor (Elisaldo) Carlini, da Unifesp, está retomando a questão de fundar uma agência medicinal de uso terapêutico da maconha, que já existe no EUA, Canadá, Holanda e vários países da Europa. Mas aqui ainda encontra resistência.
CE: A política de tratamento brasileira se aproxima mais da redução de danos ou do isolamento do dependente?
DX:
 A atual gestão do Ministério da Saúde é totalmente pró-redução de danos, que é o que cientificamente vem se provando mais adequado e eficiente. Mas o que existe ainda é um grupo de pessoas muito arraigado às concepções antigas, que formam uma barreira e fazem resistência forte às diretrizes do Ministério. Embora já se tenha evidência científica de que esse modelo repressivo e carcerário de tratamento não funciona para dependência nenhuma.
CE: Os primeiros relatos de consumo de crack no Brasil datam de 1989. Foi um aumento repentino ou foi dispensada pouca atenção à questão?
DX:
 Sem dúvida, o crack foi subestimado. De 1991 a 1993, houve um boom, mas, na época, se supunha que seria um fenômeno paulistano. Hoje o crack está em todo lugar: no Sul, em Brasília, no interior, no Nordeste. No Recife, a situação é pior do que em São Paulo. O que aconteceu foi que técnicos e profissionais que trabalham com isso ficaram nessa briga que eu comentei, para ver quem detém o saber, e quem sofre com isso é o usuário de drogas. Na década de 90, montei o Projeto Quixote para crianças de rua. São Paulo tem um exército de menores de rua viciados e a pergunta é: o que se faz efetivamente por eles? Essa briga entre autoridade e profissionais é uma coisa ridícula. Sobretudo, porque temos medicina basea-da em evidência e nos estudos de metanálise que comprovam essas teorias. Não é só uma questão de opinião. Existem maneiras de verificar isso cientificamente. Eu acabei de orientar a tese de um aluno da Unifesp, o Francisco Rocha, sobre o uso terapêutico da maconha. Por que fui orientar? Porque ficava essa polêmica. Vamos aplicar toda a metodologia científica disponível e fazer uma revisão sistemática. O uso terapêutico da maconha é bom ou ruim? Se for ruim, a gente engaveta. Se for bom, continuamos pesquisando. E o que a tese mostrou foi que o uso terapêutico da maconha é algo muito promissor. É uma área muito promissora, mas negligenciada por preconceito.
CE: No caso do tratamento para dependentes de crack, qual a causa do sucesso da substituição por maconha?
DX:
 A gente tem apenas hipóteses por enquanto. Para se ter certeza, precisaríamos de mais estudos que a gente não consegue fazer porque não existe uma regulamentação do uso terapêutico da maconha. Estamos atrasadíssimos nisso. O que se supõe é que a compulsão que o dependente tem pela droga se relaciona com os índices de serotonina cerebral. Por algum motivo, as medicações que aumentam a serotonina do cérebro são pouco eficazes na dependência do crack, diferentemente da maconha, que talvez ajude o dependente a segurar a vontade de usar crack. Essa é uma hipótese neuroquímica que explicaria bem, mas ainda é preciso comprovação científica.
CE: O senhor se afastou do estudo do uso terapêutico da maconha?
DX: 
Não é que eu me afastei. Estou fazendo isso em outros níveis. Com ratos e não com humanos, para não esbarrar no questionamento ético.
CE: Por que o crack tem efeitos tão devastadores?
DX: 
Os efeitos são basicamente os mesmos da cocaína, o que altera é a intensidade. Temos de lembrar – e isso é algo que incomoda a gente – que 40% de quem usa crack não se vicia. Da mesma forma, 90% dos usuários de álcool não se tornam alcoolatras. É claro que ninguém recomendaria arriscar. Mas só o fato de existir esse fenômeno intriga muita gente. Por que existem pessoas que conseguem usar uma droga desse potencial e não se tornam dependentes? Há a vertente biológica e a suscetibilidade psicológica. Se eu sou uma pessoa deprimida e uso uma substância que me bota para cima, meu risco é maior. Esse foi o tema da minha tese de doutorado: o quanto a depressão pode ser o gatilho para a dependência de cocaína. Certa vez, eu estava fazendo uma palestra sobre drogas numa escola e discutia aspectos sociais e antropológicos da questão. Existe uma coisa na nossa sociedade que é o hedonismo, o culto ao prazer, à beleza, ao sucesso. Esse é o modelo que transmitimos a nossos filhos. Todos os pais esperam que os filhos sejam ricos, maravilhosos, inteligentes etc. Não é humano, não é real. A vida não é assim. Provoquei a plateia: o único jeito de o jovem sentir o que a gente espera dele é cheirando cocaína! Por incrível que pareça, é exatamente isso que a intoxicação por cocaína te leva a sentir. É a única forma de os filhos atingirem as expectativas dos pais. É claro que isso eu digo de uma forma provocativa e jocosa, mas é para os pais pensarem um pouco o quanto eles estão conversando com os filhos sobre os fracassos e dificuldade deles. E não ficar apenas em um discurso de cobrança eterna. Tanto que a prevenção nas escolas, com palestras aterrorizantes sobre o perigo das drogas, não funciona.
CE: Que tipo de programa de prevenção é eficiente nas escolas?
DX:
 Antes de falar o que funciona, vou dizer o que não funciona. Qual é o efeito dessas palestras? Primeiro, que são frequentemente feitas por pessoas que têm uma visão muito repressiva e vão falar mentiras. O jovem que já experimentou drogas ou tem um amigo que usa não acredita naquilo, pois o que ele ouve não bate com a vivência dele. Aliás, já se comprovou que, para quem não tem informação, esse tipo de palestra pode ser um instigador para usar drogas. Justamente porque você está falando com uma população que tem essa necessidade de transgressão. Na verdade, o paradigma da prevenção passa a mudar quando se abre mão da prevenção policialesca e se parte para uma prevenção na linha da redução de danos. A prevenção deixa de ter esse objetivo utópico de exterminar as drogas do mundo e passa a ter o objetivo de abordar o jovem para, caso este experimente a droga, ele conte com mecanismos de proteção para não se tornar dependente. O foco mais importante não é mais evitar a primeira experiência com droga, mas o uso indevido, a dependência. Como se faz isso? Trabalhando coisas que, aparentemente, não têm nada a ver com droga: autoestima, Autoimagem, relação com o corpo, com sexualidade, com os modelos que adultos representam. Se esse adolescente estiver bem consigo mesmo, ele pode até mesmo experimentar drogas sem que necessariamente ele vá ficar dependente. Quem vai se viciar é que aquele que está se sentindo o mais feio, o mais burro, o que não arruma namorada, e assim por diante. Esses seriam fatores de risco.
CE: Quais são as drogas ilícitas mais usadas pelos jovens?
DX:
 Maconha e solventes, lança-perfume benzina, acetona. Isso foi uma surpresa.
CE: Em relação ao álcool e ao cigarro, damos menos importância a um consumo que também é alto?
DX:
 O cigarro vem diminuindo, o que é um dado positivo. Existe uma conscientização maior da população. Já o consumo do álcool é algo impressionante, que vem subindo. Justamente porque a permissividade é enorme.
CE: O que se sabe da relação do jovem com o álcool?
DX:
 O padrão de uso não é diário, é menos frequente. Mas o usuário-problema é aquele que bebe mais de uma vez por semana. O álcool tem uma ação neurotóxica seriíssima. E, mesmo o uso de álcool apenas nos finais de semana, em grandes quantidades, é sempre preocupante pelos danos envolvidos neste padrão de consumo.

domingo, 21 de novembro de 2010

Entre a Moral e a Ética

Nós e os nossos valores
“Os conceitos de moral e ética, embora sejam diferentes, são com frequência usados como sinônimos. Aliás, a etimologia dos termos é semelhante: moral vem do latim mosmoris, que significa “maneira de se comportar regulada pelo uso”, daí “costume”, e de moralismorale, adjetivo referente ao que é “relativo aos costumes”. Ética vem do grego ethos, que tem o mesmo significado de “costume”. Em sentido bem amplo, amoral é o conjunto das regras de conduta admitidas em determinada época ou por um grupo de homens. Nesse sentido, o homem moral é aquele que age bem ou mal na medida em que acata ou transgride as regras do grupo. A ética ou filosofia moral é a parte da filosofia que se ocupa com a reflexão a respeito das noções e princípios que fundamentam a vida moral.” (ARANHA; MARTINS, 1993)
Avalie o conceito acima apresentado. Ele esclarece ou deixa dúvidas? Sabemos mais ou menos depois de ler estas palavras? Aprendemos ou simplesmente agregamos mais alguns dados, sem que cheguemos a transformar essa informação em conhecimento? Aliás, qual a diferença entre informação e conhecimento? Saraivada de dúvidas e questionamentos sem fim, a função da filosofia é justamente essa, ou seja, fazer com que nossos neurônios entrem, literalmente, em ebulição...
E um dos temas que normalmente geram dúvidas é a discussão sobre o significado muito aproximado dos termos Moral e Ética. Nesse sentido é imprescindível lembrar que ambos relacionam-se a costumes, como indicado na definição dada pelas professoras Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins, em sua já clássica obra “Filosofando – Introdução a Filosofia” (Editora Moderna), e também a valores, contextos, ideias que prevalecem, grupos que dominam...
Inicialmente vale destacar que a colocação de Aranha e Martins é esclarecedora no que tange a delimitação, ainda que a partir de um tracejado que para muitos é de difícil visualização, quanto à diferença entre moral e ética. É ilustrativa também ao nos mostrar que na maior parte do tempo utilizamos o conceito de ética quando deveríamos usar o de moral, já que o segundo refere-se “a maneira de se comportar regulada pelo uso”, enquanto o primeiro, relativo à ética, constitui a ação de análise e reflexão “a respeito das noções e princípios que fundamentam a vida moral”.
Na maior parte das circunstâncias da vida real que demandam nossa opinião (e evidentemente, valoração ou emissão de juízos de valor), no atual contexto de globalização - como a crise econômica, a corrupção política, as guerras ou mesmo em situações corriqueiras, do cotidiano, como quando alunos colam ou pessoas furam fila em bancos – nos referimos aos atos que consideramos errados como decorrentes da falta de ética. Deveríamos falar em moral...
Para isso utilizamos como base de raciocínio e análise, os elementos e valores condicionantes culturais de nossa sociedade – tempo e espaço – que prevalecem nos espaços em que estamos inseridos. Por exemplo, condicionante clássico, já plenamente estabelecido e que, há pouco mais de 200 anos seria combatido por expressiva e influente parcela do extrato social dominante, refere-se à ideia de que o “trabalho dignifica e enobrece” enquanto, por outro lado, a ociosidade é um mal, um problema ou mesmo uma chaga social...
Há 200 anos prevalecia, ainda que decadente, a lógica da nobreza, que praticava e advogava em favor do ócio, influenciando fortemente até mesmo sua algoz burguesia, que apesar de estruturar sua ascensão e glória no trabalho e na busca incessante do capital, admirava as pessoas de “sangue azul” e copiava não apenas seus hábitos e modismos, mas também algumas de suas ideias. Entre as quais, por exemplo, a ideia reinante então de que o trabalho, em especial aquele que exigia que se sujassem as mãos, não cabia a pessoas dignas, finas, elegantes...
Ou seja, ao apresentarmos este exemplo queremos demonstrar como nossa compreensão e avaliação moral de acontecimentos e ações que ocorrem ao nosso redor está submetida a fatores e elementos que são condicionadores e que, de certa forma até mesmo nos aprisionam, sem que nem ao menos tenhamos plena consciência disso...
E é nesse momento e a partir desse ensejo, ou seja, da compreensão que nem mesmo nossos pensamentos, ainda que os pensemos livres e independentes de qualquer influência, podem prescindir da ética como elemento de reflexão sobre a moral.
Os conceitos são, portanto, interdependentes se temos a intenção real de pensar com profundidade, superando os limites estreitos a que na maioria das vezes somos submetidos, buscando compreender não apenas guiados pelos valores contextualmente dominantes. Entender as questões e emitir juízos de valor, que percebam a moral dominante, e ir além desses condicionantes culturais, a partir de um exame criterioso e crítico daquilo que está sendo colocado em questão e das respostas que a sociedade normalmente daria, é ir além da moral e, aí sim, pensar eticamente.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Aproveitamento escolar de alunos negros é menor do que o esperado


A enorme diferença entre o desempenho de estudantes brancos e negros americanos é bem conhecida – um agravante social que divide legisladores e é alvo de uma série de reformas escolares. Porém, um novo levantamento, focado em negros do sexo masculino, afirma que a situação é ainda pior do que se imaginava.
Apenas 12% de alunos negros na quarta-série do ensino fundamental estão aptos a ler. Entre os alunos brancos, essa porcentagem sobre para 38%. Somente 12% dos estudantes negros na oitava série tem o aproveitamento exigido em matemática, contra 38% de alunos brancos.
Isolada do contexto, a pobreza não parece ser fator suficiente para explicar tais diferenças: garotos brancos  pobres possuem desempenho igual ao de garotos afro-americanos que estão inseridos num contexto de pobreza, um índice medido por meio da merenda subsidiada às escolas.
As informações foram criteriosamente avaliadas por meio de respeitáveis testes de proficiência em matemática e leitura, conhecidos como National Assessment for Educational Progress(Avaliação Nacional de Progresso Educacional), aos quais os estudantes foram submetidos em 2009, respectivamente, na quarta e oitava séries. O levantamento chamado A Call for Change(Um despertar para mudança) foi publicado pelo Council of the Great City Schools, um grupo de defesa de escolas públicas urbanas. Ainda que algumas razões mais suaves e outras um tanto específicas sobre o problema já tenham sido relatadas anteriormente, o grupo espera que coletando um punhado de dados "de cair o queixo" vai causar uma espécie de solavanco, trazendo um senso de emergência nacional.
"O que isto claramente demonstra é que negros do sexo masculino sem elegibilidade para receber a merenda gratuita ou com preço reduzido não estão se saindo melhor do que brancos do mesmo sexo que são pobres", conta Michael Casserly, diretor executivo do conselho. O levantamento mostra que, em média, garotos negros não conseguem acompanhar  o ritmo desde o primeiros anos de vida. A taxa de mortalidade de bebês é maior entre mães negras e crianças de pais negros são duas vezes mais propensas a viver num lar de pais desempregados. Durante o ensino médio, estudantes afro-americanos largam os estudos cerca de duas vezes mais que estudantes brancos, e a pontuação no SAT (exame educacional padrão aplicado nos Estados Unidos) fica em média 104 pontos mais baixa, se comparada à pontuação dos demais alunos. Na  universidade, o número de homens negros representava apenas 5% dos alunos em 2008.
A análise dos resultados dos testes concluiu que a pontuação matemática de 2009 para alunos negros do sexo masculino não foi tão diferente da pontuação obtida por meninas negras cursando quarta e oitava séries, mas os garotos ficam atrás dos alunos latinos de ambos os sexos, que estão abaixo da média dos garotos brancos em 30%. A busca recente por explicações tem pesquisado outras causas além do fator pobreza, o que pode futuramente estimular novos esforços.
"Existem provas mais do que suficientes de que alunos são submetidos à preconceitos raciais muito antes do primeiro dia no jardim de infância", conta Ronald Ferguson, diretor doAchievement Gap Initiative em Harvard. "Eles precisam lidar com uma série de pressões históricas e sociológicas. Ao invés de somente relatar isso, precisamos iniciar debates que as pessoas relutam em ter." Isso inclui "discussões sobre técnicas de cuidados que pais e mães devem ter nos primeiros estágios da infância", completou Ferguson. "São atividades que pais podem desenvolver com suas crianças entre dois e quatro anos de idade. O quanto é preciso conversar com eles, as formas de se conversar, maneiras de impor disciplina e de encorajá-los a pensar e desenvolver um senso de autonomia."
O levantamento propõe ainda uma conferência na Casa Branca, impelindo o Congresso a destinar mais verba para que escolas possam estabelecer uma rede de mentores negros.
As únicas discussões que o levantamento não abrange são respostas identificadas com um movimento robusto de reformas escolares que enfatiza o fechamento de escolas fracas, oferecendo apenas a opção por charter schools (escolas independentes que não são administradas por um distrito escolar), o que aumenta a qualidade dos professores.
O levantamento optou não ir por este caminho porque "não existe muito material de pesquisa que aponte que tais estratégias levem a melhores resultados", disse Casserly. No entanto, há opiniões divergentes: "a chave para diminuir as diferenças é "ensino de boa qualidade", disse Ferguson.
Uma das maiores escolas distritais que já demonstra progresso é a Baltimore, onde a taxa de estudantes afro-americanos que largam os estudos baixou para 4,9% no último ano letivo, contra 11,9% nos três anos anteriores. O índice de alunos negros que se formam também aumentou: 57% entre 2009 e 2010, comparados a 51% nos três anos anteriores.
Andres Alonso, diretor do Baltimore City Public Schools, afirma que a melhora teve um pouco a ver com mudanças como a extensão do período de permanência nas escolas e a inserção de tutores. Mas, antes, Alonso fez críticas agressivas à escolas fracas, que chegaram a bater à porta de muitos desistentes para tentar convencê-los a voltar, gerando uma série de alertas. "Este ano, a taxa de desistência entre latinos a afro-americanos foi menor do que a de alunos brancos," afirma Alonso.

sábado, 6 de novembro de 2010

Olhar digital


A divulgação de mais uma inovação tecnológica digna da ficção científica alimentou as esperanças de milhares de vítimas de doenças oculares degenerativas na semana passada. Pela primeira vez na história, um implante digital foi capaz de restaurar parte da visão de três vítimas de distrofia hereditária da retina, um mal que leva progressivamente à cegueira. O feito foi alcançado por pesquisadores da Universidade de Tübingen (Alemanha) e envolve a aplicação de um chip equipado com 1.500 receptores de luz. Eles são capazes de processar imagens digitalmente e de transformá-las em impulsos depois direcionados ao nervo óptico e ao cérebro. Segundo os responsáveis pela pesquisa, o objetivo é lançar o implante no mercado em cinco anos. Dessa forma, cerca de 200 mil portadores de retinose pigmentar – que provoca a falência parcial ou total da retina – e outros milhões de pacientes com degeneração macular, um problema relativamente comum entre idosos, também terão chances de recuperar a visão.
Vale deixar claro, no entanto, que estamos diante dos primeiros resultados de um trabalho que deve ser aperfeiçoado nos próximos anos. As imagens captadas pelo chip são em preto e branco e ainda estão muito longe de imitar o trabalho do olho humano à perfeição. “Ainda não atingimos um ponto de excelência, mas conseguimos fazer com que nossos pacientes enxerguem coisas como uma mesa, um garfo ou até mesmo um rosto”, disse Eberhart Zrenner, diretor do centro de pesquisas oftalmológicas de Tübingen, ao jornal inglês “The Guardian”. Outro detalhe importante é a limitação do tratamento a lesões na retina – se o nervo óptico foi afetado, nada pode ser feito ainda.
Por outro lado, a melhora instantânea na qualidade de vida dos voluntários revela o poder transformador do chip instalado em suas retinas. Mika Terho, um finlandês de 46 anos, é um deles. Ele começou a perder a visão aos 16, quando percebeu que não conseguia mais acompanhar os amigos em passeios noturnos de bicicleta. Aos 30, ficou cego do olho esquerdo.
O mesmo aconteceu com o direito cinco anos depois. “Ainda tinha um pouco de visão periférica, mas não o suficiente para reconhecer uma coisa sequer. O máximo que conseguia era distinguir a noite do dia”, afirmou Terho em um vídeo divulgado pelos pesquisadores alemães.
Os médicos levaram cerca de seis horas para implantar o chip na retina dos voluntários. Primeiro, eles abriram uma pequena aba na parte interna do olho e nela instalaram a minúscula placa de 9 mm2. Um fio finíssimo foi acoplado a ela e ligado a uma bateria instalada atrás da orelha dos pacientes. “As coisas começaram a acontecer em questão de horas”, disse Terho. “Eu olhava para as pessoas e elas pareciam fantasmas de um filme em preto e branco. Aí tudo ficou mais claro. Ajustamos o chip para deixar as imagens cada vez mais nítidas. Comecei a me sentir como um piloto de testes de uma equipe de Fórmula 1”, finalizou o finlandês.